quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Pensamento 1_ A exclusão social em Angola (memórias de uma experiência)

A experiência ao serviço de um projecto desenvolvido por uma ONG Portuguesa, em parceria com a Administração da Província do Huambo e do Município de Ucuma (Município onde o projecto foi desenvolvido), com o grande objectivo de melhorar a qualidade do ensino no Município através da formação pedagógica de professores e de formação ao nível da gestão escolar dos directores de escolas do I nível e dos responsáveis municipais pela área da educação foi o mote para esta reflexão que partilho. Hoje estou mais resolvida mas a gestão das emoções associadas às dificuldades de implementação no terreno geraram…muitas angústias.

Várias questões se foram colocando ao longo do projecto….questões relacionadas com as opções metodológicas ao nível da formação pedagógica dos professores, dos directores e dos responsáveis locais, mas também questões relacionadas com o papel dos parceiros locais no projecto e dos potenciais benefícios que este mesmo projecto poderia trazer às comunidades locais.

A compreensão da comunidade, dos seus interesses, das suas vontades das suas leituras sobre a realidade acabaram por me fazer cair num grande vazio conceptual. Defendendo, por deformação profissional, a participação e envolvimento das comunidades nos seus próprios processos de mudança, deparei-me com um estrutura social bastante hierarquizada, com um esquema de controlo político muito grande, muitas vezes impeditivo de processos de tomada de consciências das comunidades do seu papel no seu próprio desenvolvimento.

A participação, as questões de género e de igualdade no acesso, a educação para todos são ideias que surgem já no discurso (político partidário ou não) dos responsáveis e, consequentemente, no discurso das pessoas, embora na prática ainda não tenham sido criadas as condições para a sua operacionalização.

Veja-se o caso da OMA (Organização das Mulheres Angolanas). Sendo uma ONG, tem como missão principal promover a integração e o desenvolvimento das mulheres angolanas, todas, sem discriminação de religião ou cor….mas a OMA pertence ao partido do governo (MPLA) e, coincidentemente, uma das condições para a pertença à organização é a filiação partidária.

A presidente da OMA no Ucuma era um homem….porquê? Por escolha das próprias, foi a resposta dada à curiosidade de quem é “de fora e por isso não percebe as nossas escolhas”.

Para além da OMA, uma outra dificuldade que senti foi a de perceber porque é que os critérios de confiança partidária se sobrepunham sempre a critérios de competência, muitas vezes associados à garantia de um bom desempenho.

Ao mesmo tempo, duplicam-se as acções de formação desenvolvidas tanto por ONG´s locais ou internacionais ou mesmo pelo Ministério da Educação, reconhecidas como importantes por todos. “Aprender é bom…ajuda a lutar contra o obscurantismo do homem e a construir o amanhã”.

A educação escolar e a formação profissional são reconhecidas pelo Governo Angolano como fundamentais na reconstrução nacional e na união de todos os angolanos, mas também como factor de reconstrução e reabilitação do homem. Esta ideia é tão reconhecida pelo poder político como pelo poder tradicional.

Um outro aspecto, que aprendi no terreno, sem nunca me ter despertado grande curiosidade, tem que ver com a herança colonial ao nível da educação. De repente, ter sido aluno na “escola colonial” é uma honra apenas de alguns – dos mais velhos – que se esforçam por transmitir aquilo que aprenderam mesmo que os conteúdos façam pouco sentido. “Muito do que essas populações súbditas aprenderam nas escolas e universidades do Governante colonial era mais discurso político e social do que ciência aplicada e competência técnica[1], sendo por isso peritos na arte do “protocolo” e das hierarquias governativas. “Um dos piores legados do colonialismo foi a explosão de má vontade contra os antigos senhores e os seus representantes, não tanto ao nível dos governos, onde os negócios e dinheiros são movimentados, como ao das relações entre as pessoas”[2], alimentando desconfianças entre as pessoas e falsas ideias sobre “nacionalismo” e “cidadania”.

Independentemente disto, é também consensual o reconhecimento de que aqueles que tiveram a oportunidade de estudar nas escolas coloniais falam e escrevem melhor do que “os outros”, conhecem melhor a geografia de Angola e do mundo. Ao nível da comunidade onde vivi, o ter sido estudante da “escola colonial” era um factor de aproximação a nós (estrangeiros) mas de afastamento dos outros (comunidade).

Um outro aspecto, este reconhecido e instituído a nível nacional[3], prendia-se com os esquemas de corrupção que se fazem sentir até nas escolas no mato. A justificação para estas questões prendem-se, segundo os responsáveis municipais, com o facto de os “salários virem sempre atrasados”…mas mesmo quando os salários começaram a vir a horas, os esquemas mantiveram-se, e nessa altura a razão foram os baixos salários….mas mesmo quando um professor é nomeado ou director de uma escola ou até mesmo nomeado para um cargo de poder maior, estes esquemas mantêm-se…Nesta altura, a família (muito grande) é a justificação.

Senti, no limite, que o projecto não fazia sentido nenhum….que estava um passo à frente (ou ao lado) da capacidade das pessoas, das suas necessidades, mas não dos seus interesses. Senti que as pessoas não estavam “treinadas” para dizer o que pensam e que nunca dizem o que pensam sem o consentimento dos “chefes”…e quando não sabem, dizem “ainda não cheguei lá” ou “falam à toa”, a não ser quando a coragem e a conversa mais individual e alguma confiança ganha com alguns estrangeiros lhes permite afirmar que “não nos deixam ser curiosos”.

Senti muitas vezes que apesar do elogio e louvor ao cidadão angolano, a identidade (ou falta dela) era uma questão pouco clara para muitas pessoas (e para mim, inclusive).


Senti que a escola era uma forma de reprodução do sistema que se faz sentir em Angola e não como espaço de dinamização e revitalização do tecido social angolano. Senti também que a escola era um instrumento de controlo que promovia a discriminação e a exclusão daqueles que eram diferentes, para além de não se explorar a questão da identidade pessoal. A escola é o local onde se aprendem coisas que não fazem muito sentido mas…onde se deve ir porque é importante.


A baixa auto-estima, a falta de confiança nas pessoas, a ausência de balizas morais, a falta de fé e de crença num futuro diferente (até mesmo no futuro…a taxa de suicídio na província do Huambo é bastante alta), a falta de espaço (e de estímulo) para a criatividade individual condicionam as opções feitas pelas pessoas, justificando muitas vezes a resignação[4] ao que a vida lhes proporciona e a crença em que o governo (o partido) resolverá todas as dificuldades e problemas.

Falar por isso de exclusão em Angola é falar da situação em que vive a maioria das pessoas.

Exclusão pela dificuldade no acesso à educação.

Exclusão pela precaridade de empregos e falta de perspectivas no futuro.

Exclusão pela pobreza (muitas vezes prolongada).

Exclusão pela fragilidade dos laços sociais, provocada pelo longo conflito armado.

Exclusão pela perda de referências.

Exclusão pelo sentimento de falta de identidade (quem é o angolano?) derivada da grande diversidade étnica.

Exclusão sobretudo pelo não reconhecimento dos direitos de cidadania.

Atrevo-me a afirmar que, ao contrário do que é proposto por Bruto da Costa (1998), a exclusão em Angola não é um processo nem se organiza por níveis, mas um estado. Um indivíduo pode passar para uma situação de ruptura de forma mais ou menos imediata sendo também possível observar o contrário.[5]

A verdade é que a ausência de Estado-Providência e a situação de exclusão do mercado de trabalho em que vive a maioria da população resulta na exploração de estratégias alternativas de sobrevivência, normalmente através de iniciativas informais geradoras de algum rendimento (seja ela comércio ou subornos ou outros esquemas mais criativos). A filiação partidária é, para muitos, uma solução para a situação de exclusão (mesmo que na prática não resolva a questão do emprego e, por isso, da exclusão económica contribui para a aceitação social).

Mas há também um outro fenómeno interessante, apesar de não generalizado. Alguns dos militantes dos partidos da oposição mantêm-se fiéis às suas opções ideológicas. A consequência é o isolamento destes militantes da vida social das comunidades. Várias foram as comunidades FALA e UNITA com quem tive oportunidade de contactar, que viviam isoladas (ou seja, em aldeias na periferia dos grandes centros, tanto da Cidade do Huambo como da Cidade do Ucuma) mas fiéis aos seus “princípios ideológicos”.

A exclusão social em Angola tem, por isso, uma dimensão subjectiva bastante forte. A dimensão politica, condiciona em muito a situação social, económica e cultural dos cidadãos.

Senti, várias vezes, as pessoas como instrumentos ao serviço dos interesses políticos. O controlo, a imposição (e reprodução) do discurso, os entraves ao sucesso relativamente a quem não é da confiança do partido, alimentam uma lógica de servidão e seguidismo inteligível para observadores (ainda que participantes e envolvidos) exteriores.

O conceito de exclusão aplicado à realidade Angolana diverge não no princípio, mas na sua operacionalização. Relaciona-se sobretudo com a falta de direitos dos cidadãos, direitos estes relacionados sobretudo (e em contexto mais rural) com opções e identificações políticas. Caracteriza, por isso, a situação da maior parte da população.

O discurso para o exterior e para os estrangeiros é de união entre todos os angolanos (assente na ideia de inclusão), mas na prática essa união nacional e o “homem novo” que Angola pretende construir assenta mais em ideais contra o colonialismo e a sua lógica discriminatória (agora todos os nascidos em Angola são cidadãos angolanos, sobretudo os de “raça negra”, como vem explicitado nos bilhetes de identidade) acabando no entanto por promover o mesmo tipo de discriminação e exclusão e reprodução da lógica de poder (cor, filiação partidária,…).

Concordo que os principais factores explicativos da pobreza e da exclusão devem ser procurados na sociedade, no modo como a sociedade se encontra organizada e como funciona, no estilo de vida e na cultura dominantes, na estrutura de poder – factores que se traduzem em mecanismos sociais que geram e perpetuam a pobreza e a exclusão” (Costa, A.B, 1998:39), tendo o debate entre o Norte e o Sul de percorrer ainda um longo percurso de debate e análise destes fenómenos. A conclusão é a de que um entendimento global destes fenómenos não passa por uma teoria global que proponha uma solução global, mas por teorias locais que proponham entendimentos locais, soluções locais à luz de um quadro (inevitavelmente) global.

A importação de ideias, conceitos e práticas não se faz sem enganos.

E Angola está a mudar....


[1] LANDES,D.S. (2002) A riqueza e a pobreza das nações. Porque são algumas tão ricas e outras tão pobres. Lisboa. Gradiva (p. 485)

[2] LANDES,D.S. (2002) A riqueza e a pobreza das nações. Porque são algumas tão ricas e outras tão pobres. Lisboa. Gradiva (p. 494)

[3] Em Março de 2005, numa entrevista dada à TPA (Televisão Pública de Angola), o Ministro das Obras Públicas afirmou que a “gasosa” (nome vulgar dado ao suborno) era uma forma de comunicação e de entendimento entre a autoridade e a sociedade civil.

[4] O espírito do “aceita só”, sem perguntas ou comentários.

3 comentários:

Anônimo disse...

um beijinho de força de quem já esteve muito pouco tempo em áfrica mas o tempo suficiente para sentir as flustrações e injustiças de querer ajudar...

Vale e valerá sempre a pena, como dizia o nosso amigo poeta "tudo vale a pena quando a alma não é pequena."

Anônimo disse...

Olá João!!!

Fico feliz por te ver já tão envolvida! Espero que essa experiência seja maior em coisas que te darão paz...

Beijinho,

Margarida!

INÊSOCA disse...

saudades!frio na bélgica! vou por o teu blog no meu! bjocaaaa